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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Fez, a capital imperial do Marrocos

 1. - Introdução - A Fundação de Fez e Seus Primeiros Habitantes


Antes mesmo da chegada do Islã, a região onde Fez floresceria já era habitada por diversas tribos berberes, como os Sanhaja, Zenata e Masmouda. Essas comunidades viviam em assentamentos dispersos, aproveitando as terras férteis do vale do rio Fez. Não havia, contudo, uma cidade unificada ou um grande centro urbano como o que viria a ser construído.



A história de Fez como a conhecemos começa com a chegada da Dinastia Idrisid.


2. - Resumo Histórico


2.1 - Dinastia Idrisid (789 - 974 d.C.): O Nascimento da Capital Espiritual


Após a Revolução Abássida (750 d.C.), que derrubou os Omíadas e estabeleceu o Califado Abássida em Bagdá, os descendentes de Ali ibn Abi Talib (genro e primo do Profeta Maomé, e quarto califa do Islão), conhecidos como Alids, foram vistos como uma ameaça ao novo poder. Os Abássidas temiam que os Alids, por sua linhagem sagrada, pudessem reunir apoio e contestar sua legitimidade.

Um evento crucial foi a revolta Alid em Meca, que resultou na brutal Batalha de Fakhkh. Muitos Alids foram massacrados, e os que sobreviveram tiveram que fugir para escapar à perseguição.

Entre os poucos sobreviventes estava Idris ibn Abd Allah al-Kamil, um descendente direto de Hasan, neto do Profeta Maomé. Para salvar sua vida e a linhagem de sua família, Idris I fugiu do Oriente Médio, atravessando o Egito e o Magrebe (norte da África).

A Escolha do Marrocos e a Ascensão de Idris I

Idris I encontrou refúgio na região do Magrebe, que na época era um mosaico de tribos berberes diversas e independentes, muitas das quais haviam abraçado o Islam, mas mantinham uma forte autonomia local. O poder abássida no Magrebe era fraco e descontínuo, e havia diversas rebeliões e movimentos sectários.

Abertura Política: Essa fragmentação e a distância de Bagdá tornavam o Magrebe um local ideal para Idris I estabelecer um novo centro de poder independente.

Apoio Berber: Ele foi acolhido pela poderosa tribo berbere Awraba, que residia perto da antiga cidade romana de Volubilis (Walili, em árabe). Reconhecendo sua linhagem sagrada e seu carisma, os Awraba, liderados por Abu al-Hassan Musa ibn Abi al-Afia, o proclamaram Imã em 789 d.C.

Berber no deserto, foto HistoriacomGosto



Legitimidade Religiosa: A descendência de Idris I do Profeta Maomé conferia-lhe uma imensa autoridade religiosa (baraka), o que foi fundamental para sua aceitação e para a unificação das tribos berberes sob sua liderança. Ele se apresentou como um líder justo e piedoso, capaz de trazer ordem e uma forma "pura" do Islão.

A Razão Principal para a Escolha do Local de Fez (e o papel de Idris II)

Idris I iniciou a construção de um assentamento na margem direita do rio Fez, conhecido como Madinat Fas (Cidade de Fez). No entanto, o verdadeiro arquiteto da cidade como uma grande capital foi seu filho e sucessor, Idris II.

Idris I foi assassinado em 791 d.C., supostamente por envenenamento a mando do califa abássida Harun al-Rashid. Seu filho, Idris II, nasceu pouco depois e assumiu o trono ainda criança. Ao atingir a maioridade, Idris II, com sua visão e energia, percebeu que precisava de uma capital que refletisse a ambição de sua nova dinastia e servisse como um centro estratégico e econômico.

A escolha do local para Fez, mais especificamente, foi motivada por várias razões cruciais:

Abundância de Água: O Oued Fez (Rio Fez), com seus afluentes e fontes, garantia um suprimento constante e abundante de água potável para a população e para a irrigação das terras agrícolas circundantes. A água era vital para o crescimento de uma grande cidade, especialmente em uma região semiárida.

Oued Fez (Rio Fez), foto https://ouedaggai.com/


Solo Fértil: O vale do rio Fez possuía terras férteis, ideais para a agricultura, o que garantiria o sustento da população e o desenvolvimento econômico baseado na produção de alimentos. 

Posição Estratégica e Defensável: O local oferecia uma posição naturalmente defensável, rodeada por colinas. Essa topografia facilitava a construção de muralhas e a proteção contra ataques. 

Muralhas em Fez, foto em dreamstime.com


Além disso, Fez estava localizada em um ponto de intersecção de rotas comerciais importantes:

- Rotas que ligavam o Atlântico ao Mediterrâneo (via Tlemcen e Kairouan).

- Rotas que se estendiam para o sul, conectando o Marrocos às minas de ouro e aos mercados da África Ocidental (subsaariana).

- Rotas para o leste, em direção ao Magrebe central e ao Egito.


Recursos Naturais para Construção: A região oferecia argila, madeira e pedras, materiais essenciais para a construção das habitações, mesquitas, mercados e infraestruturas necessárias para uma cidade em crescimento.

Visão de Idris II: Idris II não se contentou com um simples assentamento. Ele tinha a visão de construir uma verdadeira metrópole, um centro político, econômico, religioso e cultural que rivalizasse com as grandes cidades do Oriente. Em 808 d.C., ele fundou uma segunda cidade na margem esquerda do rio, Al-Aliya, incentivando ativamente a migração de artesãos, comerciantes, estudiosos e famílias muçulmanas de Kairouan (atual Tunísia) e, crucialmente, de Al-Andalus (Península Ibérica).

- Os imigrantes de Al-Andalus se estabeleceram predominantemente na margem esquerda (Al-Aliya), que ficou conhecida como "Adwat al-Andalus" (bairro dos Andaluzes).

- Os imigrantes de Kairouan e outras partes do Magrebe se estabeleceram na margem direita (Madinat Fas), conhecida como "Adwat al-Qarawiyyin" (bairro dos Kairuaneses).

- Essa imigração trouxe consigo um vasto conhecimento em arquitetura, urbanismo, artesanato, teologia e comércio, impulsionando o desenvolvimento e a sofisticação da cidade.
 
  • Desenvolvimentos Significantes:

- A criação de Fez marcou o nascimento da primeira capital islâmica do Marrocos, um centro de poder e fé.

- Em 859 d.C., duas irmãs, Fatima al-Fihri e Mariam al-Fihri, filhas de um rico comerciante tunisiano, fundaram instituições que mudariam Fez: Fatima fundou a Universidade de Al-Qarawiyyin (inicialmente uma mesquita e centro de ensino) e Mariam a Mesquita de Al-Andalus.

Al-Qarawiyyin é reconhecida hoje como a universidade mais antiga do mundo ainda em funcionamento, solidificando a importância de Fez como um farol do saber islâmico.

A fundação dos Idrisid representou uma secessão do poder abássida, estabelecendo um califado independente no oeste islâmico.


2.2 - O Período Zenata (Séculos X e XI): Fragmentação e Disputa


Após a queda dos Idrisid, Fez entrou em um período de instabilidade. A cidade tornou-se um ponto de disputa entre as grandes potências regionais da época: o Califado Fatímida (do Egito) e o Califado Omíada de Córdoba (na Península Ibérica).

Fez trocou de mãos várias vezes, e o poder foi frequentemente exercido por chefes tribais locais  Zenata, resultando em um período de relativa estagnação em termos de grandes construções, com foco maior em fortificações.


2.3 Dinastia Almorávida (1061 - 1146 d.C.): Unificação e Expansão


Os Almorávidas unificaram as duas partes de Fez (Fas al-Bali e Al-Aliya), derrubando as muralhas internas que as dividiam. 

Eles fortaleceram as muralhas externas da cidade, construíram novas pontes e renovaram a infraestrutura urbana, preparando Fez para se tornar uma metrópole de um vasto império. 

A cidade prosperou como um centro comercial e intelectual dentro do império Almorávida, que se estendia desde o Senegal até a Península Ibérica.

A conquista de Fez pelos Almorávidas foi parte de um movimento maior de unificação e expansão do seu império.


2.4 - Dinastia Almóada (1146 - 1248 d.C.): 


Os Almóadas, com sua doutrina religiosa mais rigorosa, destruíram muitas das construções almorávidas que consideravam contrárias aos seus princípios. 

Eles reconstruíram e reforçaram significativamente as muralhas de Fez, dando-lhes a monumentalidade que ainda é visível hoje. 

Embora a capital do império Almóada tenha sido transferida para Marrakech, Fez manteve sua importância como um centro religioso e intelectual, um bastião da ortodoxia e do saber.

A conquista Almóada de Fez foi marcada por um cerco violento, que resultou em grande destruição antes da sua subjugação.


2.5 - Dinastia Merínida (1248 - 1465 d.C.): A Idade de Ouro Imperial de Fez


Os Merínidas fizeram de Fez a sua capital imperial, inaugurando o que muitos consideram a "Idade de Ouro" da cidade.

Em 1276, Abu Yusuf Yaqub fundou Fes el-Jdid (Nova Fez), adjacente à antiga medina (Fez al-Bali). Esta nova cidade incluía o majestoso Palácio Real, o Mellah (bairro judeu, inicialmente estabelecido pelos Almóadas, mas expandido pelos Merínidas) e uma grande mesquita, tudo protegido por novas muralhas.

Os Merínidas foram grandes patronos da educação e da arquitetura, construindo inúmeras e belíssimas madrassas (escolas corânicas) que ainda hoje são maravilhas arquitetónicas de Fez: Madrassa Bou Inania, Madrassa Attarine, Medersa Sahrij e Madrassa Saffarine, entre outras. Fez tornou-se o epicentro do saber islâmico no Magrebe.

Houve um grande desenvolvimento urbano, comercial e cultural, com a cidade atraindo estudiosos, comerciantes e artesãos de todo o mundo islâmico. 

A ascensão dos Merínidas consolidou seu poder sobre o Marrocos e Fez, mas também foi marcada por confrontos com os reinos cristãos na Península Ibérica, que contribuíram para o aumento da população de judeus e muçulmanos andaluzes em Fez.


2.6 - Dinastia Wattásida (1465 - 1549 d.C.): Declínio e a Presença Portuguesa


Houve um enfraquecimento do poder central e disputas internas. 

O tempo com os Portugueses: Embora Fez não tenha sido conquistada ou ocupada diretamente pelos portugueses, este período foi marcado pela intensa expansão portuguesa no litoral marroquino. Cidades costeiras como Ceuta, Tânger, Arzila, Safim, Azemmour e Mazagão foram ocupadas ou fortificadas por Portugal. Essa presença gerou grande pressão econômica e militar sobre o reino de Fez. Os Wattásidas tentaram, com pouco sucesso, resistir a esse avanço, o que enfraqueceu ainda mais sua autoridade e abriu caminho para uma nova dinastia.


2.7 - Dinastia Saadiana (1549 - 1659 d.C.): Renascimento e Vitórias Decisivas


Os Saaditas unificaram o Marrocos, expulsando os Wattásidas. Embora Fez tenha perdido seu status de capital principal para Marrakech durante parte do seu reinado, a cidade continuou a ser um importante centro cultural e religioso.  

Eles investiram na construção de fortificações para proteger o reino, inclusive Fez, contra a crescente ameaça otomana e cristã.

O comércio transaariano, especialmente de ouro, prosperou sob os Saaditas.

A Batalha de Alcácer-Quibir (ou Batalha dos Três Reis) em 1578 foi um evento definidor. Nela, as forças Saadianas, com algum apoio otomano, derrotaram decisivamente o exército português e seu rei D. Sebastião, que morreu em combate. Esta vitória não apenas cimentou a independência marroquina, mas também encerrou as ambições portuguesas de dominar o Marrocos e marcou um período de grande prestígio para a dinastia Saadiana.


2.8 - Dinastia Alaouite (1666 d.C. - Presente): A Dinastia Reinante

Após um período de anarquia que se seguiu à queda dos Saaditas, os Alaouites emergiram para restaurar a unidade do Marrocos. Fez alternou como capital com Meknès e, mais tarde, Rabat. 

A dinastia Alaouite tem sido a guardiã do patrimônio religioso e cultural de Fez, mantendo e renovando suas mesquitas e medersas. 

A cidade continuou a ser um polo de educação islâmica e de artesanato tradicional. 

A ascensão dos Alaouites marcou o fim da anarquia e o início de uma nova era de estabilidade relativa. A dinastia resistiu a várias tentativas de invasão europeia ao longo dos séculos.


2.9 - Protetorado Francês e Independência (1912 - 1956): Modernização e Luta Nacionalista


Em 1912, o Tratado de Fez foi assinado na cidade, estabelecendo oficialmente o Protetorado Francês sobre o Marrocos, o que trouxe profundas mudanças políticas e sociais.  

Foi durante este período que se construiu a "Ville Nouvelle" (Cidade Nova) fora das muralhas da medina, com infraestruturas modernas, estradas e edifícios de estilo europeu, separada da antiga Fez (Fes al-Bali), que foi preservada como um monumento histórico.  

Fez perdeu seu status de capital política para Rabat, que se tornou a sede administrativa do protetorado.  

A ocupação colonial impulsionou o crescimento do movimento nacionalista marroquino, que culminou na independência do país em 1956.


2.10 - Marrocos Independente (1956 - Presente): Preservação e Continuidade


Após a independência, Fez manteve sua importância como um centro cultural, religioso e espiritual.

Em 1981, a medina de Fes al-Bali foi classificada como Patrimônio Mundial da UNESCO, reconhecendo seu valor histórico e arquitetônico inestimável. Desde então, tem havido um esforço contínuo para a preservação e restauração de seus monumentos.

A cidade continua a ser um centro vibrante de artesanato, educação e turismo, atraindo visitantes de todo o mundo que buscam mergulhar em sua história milenar.

3. - A Fez de Hoje, o que ver e visitar




4. - Considerações adicionais





5. Referência






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