quinta-feira, 6 de novembro de 2025

São Jerônimo: Do Erudito ao Penitente, um Legado Gravado na Arte e na História

 1. - Introdução 


Aos amantes da arte, da história e do simbolismo, preparamos essa nova publicação dedicada a desvendar as camadas de significado por trás de uma das figuras mais fascinantes da iconografia cristã: São Jerônimo.

Nessa publicação descreveremos brevemente a extraordinária vida desse santo que inspirou tantos artistas e depois mostraremos algumas  obras-primas de grandes mestres, de Caravaggio a Dürer, para explorar como este santo foi retratado ao longo dos séculos.




Essa é uma idéia que tivemos baseado em tantas visitas a museus em que observamos dezenas de quadros que nos foram cativando ao longo do tempo para essa figura extraordinária. Não sei se você conseguirá esse comparativo em outro local, portanto, aproveite, leia, divulgue e curta conosco essas maravilhas. 


2. - A Vida de um Erudito Inquieto: Do Nascimento à Vocação


Nascido como Eusébio Sofrônio Jerônimo por volta de 347 d.C., na cidade de Estridão, na Dalmácia (atual Croácia), ele veio de uma família cristã abastada. Desde cedo, demonstrou uma inteligência aguçada e uma paixão pelos estudos. Sua juventude foi marcada por uma educação clássica em Roma, onde estudou gramática, retórica e filosofia sob a tutela de renomados professores. Dominou o latim e o grego, e mais tarde, aprendeu o hebraico – habilidades que se tornariam cruciais para sua missão de vida.


                                      


Contudo, a vida em Roma, com suas tentações e prazeres mundanos, causou-lhe grande inquietação espiritual. Após um período de dúvidas e reflexões, Jerônimo foi batizado por volta dos 19 anos, iniciando um caminho de dedicação mais profunda à fé.


3. -  O Chamado do Deserto: Jerônimo Penitente e Eremita


Após o batismo, Jerônimo empreendeu viagens por diversas regiões, incluindo a Gália e o Oriente. Foi durante sua estadia na Síria, por volta de 375 d.C., que ele ouviu o chamado para uma vida de eremita no deserto de Cálcis. Longe do barulho das cidades e das distrações, Jerônimo dedicou-se à ascese, à oração e ao estudo fervoroso das escrituras.



Essa fase de eremita penitente é uma das mais emblemáticas em sua representação artística. É nesse período que ele é frequentemente retratado com um olhar introspectivo, o corpo emaciado pela penitência, por vezes golpeando o peito com uma pedraum símbolo de arrependimento e purificação. O isolamento no deserto foi um tempo de profunda transformação espiritual e intelectual, onde ele aprimorou seu conhecimento das línguas originais da Bíblia.


4. -  O Maior Legado: A Tradução da Vulgata


Após cerca de cinco anos no deserto, Jerônimo retornou à vida comunitária e acabou em Roma, onde se tornou secretário do Papa Dâmaso I. Foi o Papa quem o encarregou da monumental tarefa de revisar e traduzir a Bíblia para o latim. As versões existentes na época eram fragmentadas e inconsistentes.

Jerônimo aceitou o desafio e dedicou as últimas três décadas de sua vida a esta obra colossal em Belém, onde fundou monastérios. Trabalhando incansavelmente, consultando manuscritos hebraicos e gregos, ele produziu a "Vulgata" (que significa "versão comum"), a tradução da Bíblia que se tornaria o texto oficial da Igreja Católica por mais de mil anos. É por essa dedicação ao estudo e à palavra divina que vemos tantas representações de São Jerônimo escrevendo, imerso em seus livros e pergaminhos.

 

5. -  Por Que Tanta Devoção na Espanha e Pinturas de Penitência também na Itália?

A figura de São Jerônimo gozou de imensa popularidade, especialmente na Espanha e em diversos centros artísticos italianos, particularmente após o Concílio de Trento (1545-1563) e o advento da Contrarreforma.

A Devoção Espanhola: Na Espanha, a Igreja Católica buscava reafirmar seus valores e aprofundar a fé em resposta ao avanço do Protestantismo. São Jerônimo era um modelo perfeito. Sua vida de eremita e penitente ressoava com a ênfase na ascese, no sacrifício e na introspecção que caracterizava a espiritualidade espanhola da época. Além disso, seu monumental trabalho na tradução da Vulgata o tornava um defensor da ortodoxia católica, um erudito cuja dedicação à palavra de Deus era inquestionável. Ordens religiosas como os Jerônimos (Ordem de São Jerônimo) se espalharam pela Espanha, contribuindo para a devoção popular e a comissão de inúmeras obras de arte. 

O Apelo dos Pintores Italianos e Espanhóis: Para os artistas italianos e espanhóis do Renascimento e, especialmente, do Barroco, a figura de São Jerônimo Penitente oferecia um palco dramático. O Concílio de Trento incentivou a arte religiosa a ser clara, didática e emocionalmente envolvente, servindo como um meio para instruir e inspirar os fiéis. A representação de um santo em profundo sofrimento e penitência, com seu corpo emaciado, o crânio (memento mori) e o leão, era ideal para evocar devoção e reflexão sobre a mortalidade e a salvação. Pintores como Caravaggio, Ribera, Guercino e Guido Reni exploraram a crueza da humanidade de Jerônimo, sua dor e sua devoção extrema, traduzindo-as em imagens poderosas que tocavam o coração dos espectadores e serviam aos propósitos espirituais da época.

6. - Desvendando os Símbolos: O Crânio, o Leão e Mais

Agora que conhecemos um pouco de sua jornada e sua relevância cultural, os símbolos que o acompanham nas pinturas ganham ainda mais profundidade:

O Crânio: Presente em muitas de suas representações, o crânio é um poderoso "memento mori" – uma lembrança da inevitabilidade da morte e da finitude da vida terrena. Para Jerônimo, que buscou a penitência e a salvação, ele servia como um lembrete constante da transitoriedade do mundo e da importância de focar na eternidade.

O Leão: A lenda mais famosa associada a São Jerônimo narra que, enquanto estava em seu mosteiro, um leão ferido entrou mancando. Seus monges fugiram apavorados, mas Jerônimo, com compaixão, removeu um espinho da pata do animal. O leão, em gratidão, permaneceu com ele como um fiel companheiro. Na arte, o leão simboliza não apenas a amizade e a mansidão que pode dominar a ferocidade, mas também a capacidade de São Jerônimo de "domar" as próprias paixões e impulsos selvagens através da fé e da penitência. Além disso, pode representar a força da palavra divina que ele traduziu.

Os Livros e a Pena: Estes são, claro, alusões diretas à sua vida de estudioso e, principalmente, à sua gigantesca obra de tradução da Bíblia, a Vulgata, que o tornou um dos maiores intelectuais da Igreja. 

A Pedra: Em algumas obras, São Jerônimo é mostrado com uma pedra na mão, batendo em seu peito. Este é um símbolo da penitência e da autoflagelação, refletindo sua busca por purificação durante o período no deserto.

7. - Preparando o Olhar para as Obras-Primas


Armados com este conhecimento sobre a vida, os principais símbolos e a intensa devoção a São Jerônimo, estamos prontos para embarcar em nossa jornada visual! Desse ponto em diante, mostraremos como artistas como Caravaggio (com sua icônica obra na Galeria Borghese), Guido Reni (e seu São Jerônimo com a caveira), Juan Ribera (com a representação dramática do anjo do julgamento no Prado), Anton Van Dyck, Guercino e a pintura de Albrecht Dürer (que também tem uma versão em Portugal) interpretaram essas facetas do santo, oferecendo-nos diferentes perspectivas sobre sua fé, seu intelecto e sua humanidade.

7.1 - "São Jerônimo escrevendo" - Michelangelo Merisi da Caravaggio, 1605 a 1606, atualmente na Galeria Borghese, Roma.

A pintura retrata a figura envelhecida de São Jerônimo, curvada sobre os textos sagrados, com a pena na mão. Há uma composição em duas grandes áreas de cor, que contrastam tons quentes (pele, manto roxo) com frios (caveira, tecido branco sobre o livro aberto), simbolizando uma dialética entre vida e morte.






7.2 - "São Jerônimo" - José Ribera

  • A pintura é um exemplo do estilo tenebrista, caracterizado pelo uso dramático de luz e sombra, e do realismo de Ribera. 
  • São Jerônimo é retratado com uma pele envelhecida e enrugada, segurando uma pedra para bater no peito, um ato de penitência, e contemplando uma caveira, que simboliza a mortalidade humana. 
  • A obra também inclui um livro e um pergaminho, referências à sua erudição e ao seu trabalho de tradução da Bíblia para o latim, conhecida como Vulgata
  • Existem várias versões desta pintura, que fazem parte de coleções de museus como o Museu do Prado, o Museu Nacional de Capodimonte e o Museu de Arte de Cleveland. 







7.3 - San Jeronimo e a caveira - Guido Reni

  • São Jerônimo: O santo é retratado como um homem idoso, com uma longa barba branca e expressão contemplativa. Ele está nu da cintura para cima, coberto por um tecido vermelho vibrante. Seu rosto apresenta sinais de cansaço e idade, sugerindo uma vida de penitência e reflexão.
  • A caveira: O crânio que São Jerônimo segura é um símbolo de meditação sobre a mortalidade, um conceito chamado "memento mori". Na tradição cristã, especialmente na ordem franciscana, a caveira representa a passagem da vida terrena para a vida espiritual.
  • Estilo Barroco: A obra de Guido Reni é conhecida por sua elegância e espiritualidade, elementos que foram influentes no desenvolvimento do barroco. O estilo é caracterizado pelo uso de luz e sombra (claroscuro) para criar profundidade e drama, e pela predominância do emocional sobre o racional. 





7.4 -  São Jerônimo - Pereda e Salgado

A pintura mostrada na imagem é "São Jerônimo" de Antonio de Pereda y Salgado, um pintor do barroco espanhol. A obra, datada de 1643, está atualmente no Museu do Prado, em Madrid. 
A pintura retrata São Jerônimo, um dos Doutores da Igreja, em um momento de penitência e reflexão, possivelmente no deserto, onde viveu como eremita. O santo é frequentemente representado como um homem idoso, magro e com barba, como pode ser visto na imagem. 
Características e simbolismo da pintura:
  • São Jerônimo: O santo está ajoelhado, com uma expressão de êxtase ou contemplação enquanto olha para o céu. Sua pose e a representação de sua magreza destacam sua vida de penitência e isolamento.
  • Elementos simbólicos: Vários objetos na cena têm significado simbólico:
    • A trombeta: Um objeto que parece ser uma trombeta, no canto superior esquerdo, pode se referir ao Juízo Final.
    • O crânio (caveira): Simboliza a meditação sobre a mortalidade, um tema comum na arte barroca conhecido como "memento mori".
    • O livro aberto: Representa a vasta erudição de São Jerônimo e seu trabalho mais notável, a tradução da Bíblia para o latim, conhecida como Vulgata. A estampa na página aberta é uma referência a uma xilogravura de Albrecht Dürer.
    • O crucifixo improvisado: Feito de galhos, representa a devoção do santo à crucificação de Cristo.
    • O tinteiro e a pena: Simbolizam sua dedicação à escrita e aos estudos. 
A obra de Pereda é um exemplo da Escola Madrilena do século XVII, caracterizada pelo uso de uma poderosa diagonal na composição e pelo tratamento da anatomia, que se assemelha ao de José de Ribera. 



7.5 - São Jerônimo penitente - Leonardo da Vinci





A pintura na imagem é "São Jerônimo no Deserto" do artista renascentista italiano Leonardo da Vinci. A obra, datada de c. 1480-1490, é uma pintura inacabada, o que a torna um estudo fascinante do processo criativo do mestre. Atualmente, ela faz parte da coleção da Pinacoteca dos Museus do Vaticano, em Roma. 
A pintura retrata São Jerônimo, um dos Doutores da Igreja, em penitência e meditação no deserto. Sua pose dramática, com o braço direito estendido segurando uma pedra, sugere o ato de se flagelar em penitência. 
Características e simbolismo da pintura:
  • Composição: A figura angular de São Jerônimo contrasta com a forma sinuosa do leão, que se estende pela parte inferior da pintura, criando uma composição dinâmica.
  • O Leão: A lenda conta que o santo extraiu um espinho da pata de um leão, que se tornou seu companheiro leal. Na pintura, o leão é visto à direita, deitado aos pés de Jerônimo, e representa o companheiro fiel do santo.
  • O Plano de Fundo: A paisagem ao fundo ainda está em fase de esboço, com montanhas e formações rochosas. À direita, uma igreja sutilmente esboçada pode ser vista através das rochas, o que pode aludir ao papel de Jerônimo como Doutor da Igreja.
  • Estado Inacabado: Por ser uma obra inacabada, ela permite observar a técnica de Leonardo da Vinci, especialmente o rascunho em monocromático sobre o painel de madeira preparado. Estudos recentes, por exemplo, revelaram impressões digitais do artista, mostrando que ele usava as mãos para espalhar a tinta. 

7.6 - São Jerônimo - Albrecht Duhre






A pintura na imagem é "São Jerônimo", uma obra de 1521 do artista alemão Albrecht Dürer, um dos maiores nomes do Renascimento no norte da Europa. A pintura a óleo sobre madeira foi feita durante a viagem de Dürer aos Países Baixos e atualmente está no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa, Portugal. 
Características e simbolismo da pintura:
  • O Santo: São Jerônimo, um dos Doutores da Igreja, é retratado como um velho sábio, com rugas detalhadas e uma barba branca. Acredita-se que o artista tenha usado como modelo um homem de 93 anos que ele conheceu em Antuérpia. Ele está em uma pose pensativa, com a mão direita apoiando a cabeça e a mão esquerda tocando uma caveira, simbolizando a meditação sobre a morte e a brevidade da vida (memento mori).
  • Elementos da cena: A pintura inclui um livro aberto sobre uma mesa, que representa o trabalho de Jerônimo na tradução da Bíblia para o latim (a Vulgata). Também é possível ver um crucifixo na parede, um tinteiro e uma pena.
  • Estilo: Dürer era um mestre na representação de detalhes, e a pintura demonstra sua habilidade em retratar a figura humana e os objetos com grande precisão. O estilo também tem influências da arte flamenga, especialmente no trabalho de Quentin Massys. 

8. - Referências 

Notas de Viagens

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