sábado, 6 de dezembro de 2025

A Biblioteca Piccolomini - O Legado dos Papas que Dominaram o Conhecimento

 I. -  A Ascensão de Siena e o Legado dos Piccolomini 


No coração da Toscana medieval, Siena emergiu não como uma mera cidade-estado, mas como um farol , cuja luz ao longo dos séculos moldou tesouros como a Catedral de Siena e a Biblioteca Piccolomini.

Biblioteca Piccolomini, foto de Helmut Achauer, Wikimedia Commons


Essa trajetória, foi tecida por rivalidades geopolíticas, principalmente com Florença, prosperidade mercantil e o florescimento humanista do Renascimento. Isso justificou perfeitamente as decisões arquitetônicas e patronais que definiram o traço da cidade e seu legado intelectual.

Visão geral da Praça com a Torre de Siena, foto de © Santiago Rodríguez Fontoba dreamstime.com


Para entender os Piccolomini – essa dinastia de eruditos e papas que transformou Siena em um hub de saber clássico – é essencial traçar as raízes dessa cidade, desde suas origens comunais até o apogeu renascentista, onde a biblioteca surge como o ápice de um projeto familiar e cívico.


As Raízes Medievais: De Comuna a Potência Comercial (Séculos XI-XII)


Siena, fundada como colônia romana no século I a.C. (como Saena Julia), hibernou na Alta Idade Média sob domínio lombardo e franco, mas despertou com vigor no século XI, impulsionada pela rota de peregrinação via Francigena – a estrada que ligava Roma ao norte da Europa.

Por volta de 1125, Siena se emancipou como comuna independente, rompendo os laços feudais com o Bispo de Volterra e os Aldobrandeschi, senhores locais. Essa liberdade política foi o catalisador para uma economia explosiva: o comércio de lã (lanifício), a extração de mármore das pedreiras de Rapolano e, acima de tudo, o florescimento dos bancos – pioneiros como a família Bonsignori estabeleceram redes financeiras que rivalizavam com as de Florença e Gênova.

Catedral de Siena, foto HistoriacomGosto

Essa ascensão justificou a construção da Catedral de Siena em 1179, não como mero ato de devoção, mas como uma declaração estratégica de poder. No século XII, Siena enfrentava uma "guerra das catedrais" italiana: Pisa, com seu Duomo pisanorromânico iniciado em 1064, e Florença, emergente sob os Médici, usavam templos grandiosos para afirmar hegemonia regional.



O Auge Republicano e as Sombras da Peste (Séculos XIII-XIV)

No entanto, a Peste Negra de 1348 devastou Siena, reduzindo sua população de 50.000 para 15.000 em meses – uma catástrofe que interrompeu o ambicioso "Duomo Novo" (projetado em 1339 para envolver a cidade inteira, mas abandonado como ruínas). A recuperação veio no século XIV tardio, via alianças com o Papado de Avignon e o comércio de alumbre (usado em tinturaria). Essa resiliência pavimentou o caminho para o século XV, quando Siena transitou de república para senhorias familiares, com oligarcas como os Salimbeni e, emergindo das cinzas, os Piccolomini.

Peste Negra, iluminura de pessoas enterrando familiares,
"Crônicas de Gilles Li Muisis" (Gilles Li Muisis, 1272–1352) foto wikimedia

O Renascimento Humanista: Os Piccolomini e o Triunfo do Saber (Século XV)


Entrando no Quattrocento, Siena se reinventou como enclave humanista em uma Itália fragmentada pela Guerra dos Cem Anos e as invasões francesas. A cidade, agora com cerca de 30.000 habitantes, beneficiou-se da proximidade com Roma sob papas renascentistas como Nicolau V (1447-1455), que promovia a coleta de manuscritos clássicos.

Foi nesse contexto que os Piccolomini – uma família de origem corsicana, mas enraizada em Siena desde o século XII como mercadores de tecidos – ascenderam de nobres menores a potências papais.

Enea Silvio Bartolomei (1405-1464), nascido em uma Siena ainda se recuperando da peste, personifica essa evolução: humanista errante, diplomata e poeta (autor de De curialium miseriis, 1444), ele se tornou Papa Pio II em 1458, o primeiro papa renascentista a priorizar a erudição sobre a teocracia estrita.

Papa Pio II, Eneas Piccolomini, foto wikimedia


A Biblioteca Piccolomini, iniciada em 1495 por seu sobrinho Cardeal Francesco Piccolomini (futuro Papa Pio III), justifica-se como o clímax dessa trajetória.

Em uma era de expansão territorial (Siena controlava o Monte Amiata e alianças com o Reino de Nápoles), a biblioteca não era luxo, mas estratégia: Pio II havia fundado a Universidade de Siena em 1240 (revitalizada no século XV), e a família via no saber clássico uma ferramenta para legitimar seu poder.

Essa evolução de Siena – de comuna combativa a berço humanista – não só justificou esses monumentos, mas os tornou interconectados: a catedral como base espiritual e cívica, a biblioteca como pináculo erudito.

Para os Piccolomini, era mais que arquitetura; era a perpetuação de uma linhagem que, de mercadores a papas, encapsulava o espírito sienense de inovação e preservação.

II. - O Conceito da Biblioteca Piccolomini


Financiada por legados papais e receitas de indulgências, a estrutura octogonal – projetada por Bernardo Rossellino em estilo renascentista palladiano – abrigou 200 códices iluminados, preservando textos de Cícero, Virgílio e liturgia católica contra as chamas da Inquisição iminente. 

Biblioteca Piccolomini, foto HistoriacomGosto


Os afrescos de Pinturicchio (1502-1508), retratando a vida de Pio II, transformam a biblioteca em um speculum principis – espelho para príncipes, um conceito humanista para educação moral e política.

Assim, enquanto a catedral do século XII erguia Siena contra rivais medievais, a biblioteca do século XV a elevava ao panteão intelectual europeu, com os Piccolomini como patronos que fundiam fé, comércio e filologia em um legado duradouro.


Localização e Integração à Catedral de Siena

A biblioteca se conecta diretament ao Duomo de Siena, um exemplo de arquitetura gótica-italiana, ela foi adjacente ao coro da igreja para facilitar o acesso dos padres e bispos na preparação das homilias e no estudo das escrituras. A biblioteca foi inaugurada em 1495, mas concluída nos afrescos por volta de 1509.


III. - Arquitetura e Design Interno


Estrutura Física: O layout é octogonal com três naves, inspirado em bibliotecas antigas como a de Alexandria ou a Laurentiana em Florença (projetada por Michelangelo). Os materiais utilizados são mármore sienense, tetos abobadados e a escadaria externa de Giacomo Cozzarelli.

O teto da Biblioteca: Humanismo Cósmico

O teto representa o ideal de Pio II (Enea Silvio Piccolomini), um papa fascinado por astronomia (ele escreveu sobre eclipses em seus Commentarii). As constelações simbolizam a ordem divina e a predestinação: os Piccolomini como "estrelas guias" da Igreja, ligando o saber clássico (Ptolomeu, Aristóteles) à teologia cristã. Argumento convincente: Em uma era pré-Copérnico, isso reforçava o geocentrismo papal, com o céu como metáfora para o controle familiar sobre o conhecimento – estrelas fixas, como o acervo de códices "acorrentados".


Teto da Biblioteca Piccolomini, foto HistoriacomGosto


Iluminação e Espaço: É interessante como a luz natural das janelas altas realça os afrescos, criando um ambiente de contemplação erudita – um jargão renascentista para "humanismo espacial".


IV. - Os Afrescos de Pinturicchio: A Obra-Prima Artística


O Artista e Seu Estilo: O artista responsável pela pintura da biblioteca foi Bernardino di Betto (Pinturicchio), pupilo de Perugino, onde utilizou seu maneirismo precoce: cores vibrantes, figuras idealizadas e narrativas encenadas como em um palco teatral.

Afrescos da Livraria, foto Opera Duomo di Siena


Ciclo de Afrescos sobre Pio II: A decoração contou com 10 cenas principais, focados em Pio II, como a eleição papal em 1458 ou a canonização de Catarina de Siena, baseadas em crônicas humanistas. 

Exemplos dos Afrescos

a) Entrega do chapéu cardinalicio: O afresco na imagem é a sexta cena do ciclo e representa Eneias Sílvio Piccolomini, já como Bispo de Siena, recebendo o chapéu cardinalício (barrete vermelho) do Papa Calisto III em 1456, em Roma.

Entrega do chapeu cardinalicio, Pinturrichio,
foto HistoriacomGosto

b) Pio II chega a Ancona para apressar a cruzada:

A pintura retrata o Papa Pio II (nascido Enea Silvio Piccolomini) chegando a Ancona, Itália, em julho de 1464, com o objetivo de liderar pessoalmente uma cruzada contra o Império Otomano. Ele esperava inspirar os exércitos cristãos que se reuniam na cidade, mas morreu de febre apenas um mês depois, em 14 de agosto de 1464, antes que a frota veneziana chegasse e a cruzada pudesse começar. 


Pio II chega a Ancona para apressar a Cruzada,
foto Masterdrucke

c) Eneias Silvius Piccolomini, então bispo de Siena, apresenta o imperador Frederico III à sua noiva, Eleanor de Portugal

A pintura retrata o encontro que ocorreu em 24 de fevereiro de 1452, perto da Porta Camollia em Siena, onde Enea Silvio Piccolomini, então Bispo de Siena, apresentou a noiva Eleonora de Portugal ao Imperador Frederico III do Sacro Império Romano-Germânico. O casamento fazia parte da política matrimonial da dinastia de Avis e visava fortalecer as relações entre os reinos. A inscrição em latim abaixo da imagem traduz-se como "Eneas mostra Leonor, sua noiva, ao Imperador Frederico III, e elogia a menina e os reis de Portugal".


"O bispo de Siena, apresenta o imperador Frederico III
à sua noiva, Eleanor de Portugal", Biblioteca Piccolomini


A decoração além da parte explícita do Papa Pio II, também traz retratos da família Piccolomini, revelando propaganda familiar disfarçada de hagiografia.

Brasões de Armas: A imagem destaca vários brasões (escutos heráldicos) da família Piccolomini. O brasão principal, presente nas janelas de vitral e em uma grande guirlanda central, apresenta uma cruz azul carregada com cinco crescentes dourados.

Brasões de Armas, foto HistoriacomGosto



Escultura - "As Três Graças" (italiano: Le Tre Grazie).

Tipo: Cópia romana antiga de um original helenístico grego que data do século III a.C. ao século II a.C..
 
Feita em mármore, a escultura pertenceu ao Cardeal Francesco Todeschini Piccolomini (mais tarde Papa Pio III), que mandou construir a biblioteca para homenagear seu tio, o Papa Pio II. A estátua tem uma história conturbada; ela foi removida da biblioteca várias vezes, inclusive sob o Papa Pio IX no século XIX, por ser considerada indecente em um local sagrado, mas foi finalmente devolvida à sua localização original em 1974.

As três graças, foto HistoriacomGosto


V. - A Coleção de Manuscritos e Seu Legado Cultural


- Conteúdo da Biblioteca: Tem destaques como códices iluminados do século XV (Bíblia de Siena, obras de Cícero e textos litúrgicos), com mais de 200 volumes encadernados em couro com brasões.

Exemplo: Antifonário ou Gradual do século XV

O manuscrito contém canto gregoriano com notação quadrada em pautas de quatro linhas vermelhas (tetragrama). O texto em latim parcial pode ser lido como: "tollam alleluia" e "Dominus noster stans in medio discipulorum suorum dixit nobis alleluia". Este é parte do cântico (antífona) para a Oitava de Páscoa, que começa com as palavras "Surgens Iesus" (Jesus Ressuscitado).


Antifonário, foto HistoriacomGosto

A página apresenta uma grande inicial "S" decorada e iluminada com cores vibrantes (azul, dourado, rosa, verde), típica da arte de manuscritos italianos do século XV.

- Importância Humanista: Teve um grande papel na disseminação do conhecimento durante o Renascimento, quando Siena era um hub de copistas e tradutores, preservando textos gregos e latinos contra a Inquisição.

- Evolução ao Longo dos Séculos: Outras aquisições posteriores foram realizadas e teve um importante  papel na formação da identidade cultural italiana, com influências em bibliotecas como a Vaticana.

VI. Curiosidades e rumores sobre aspectos da Biblioteca


a) Manuscritos proibidos e escondidos

A Contra-Reforma (1545-1648), impulsionada pelo Concílio de Trento, visava combater o protestantismo com censura rigorosa. O Índice de Livros Proibidos (primeira edição em 1559, sob Papa Paulo IV) baniu obras "heréticas", incluindo textos humanistas que misturavam paganismo clássico com cristianismo – exatamente o ethos de Pio II, que colecionava Cícero e Platão. 

Exemplo típico de manuscrito iluminado, biblioteca piccolomini,
 foto Opera di Siena



Siena, anexada a Florença em 1555 e sob influência papal, era um ponto quente: mosteiros foram revistados, e bibliotecas eclesiais como a Vaticana esconderam volumes para proteção.

Os Rumores Específicos

Circulam lendas de que os Piccolomini ocultaram manuscritos "perigosos" durante as inspeções inquisitoriais (1570s-1580s), possivelmente em câmaras secretas sob o piso da biblioteca ou transferidos para Roma via redes familiares. Candidatos plausíveis incluem:

- Textos Pagãos Gregos: Cópias integrais de Homero ou Epicuro (sem adaptações cristãs), herdadas de Pio II via embaixadas bizantinas (pós-Queda de Constantinopla, 1453). 

- Obras Humanistas Críticas: Cartas de Erasmo de Roterdã (crítico da Igreja, indexado em 1559) ou tratados de Pico della Mirandola (Disputa sobre a Cábala, 1486).

- Tratados Científicos Precoces: Fragmentos de Copérnico ou observações astrológicas de Pio II (ele registrou eclipses em Commentarii, 1462-1464), que desafiavam o geocentrismo católico antes de Galileu (1633).

Não há documentos diretos que comprovem qualquer desses fatos, mas rumores surgem de relatos anedóticos: Vasari menciona "tesouros escondidos" em bibliotecas papais, e o fato de que o acervo Piccolomini sobreviveu intacto (diferente de perdas em Florença) alimenta especulações. 


b) Visita de  Figuras Notáveis: 

Johann Wolfgang von Goethe: O Encantamento do "Teatro da História" (1786-1787)

Johann Wolfgang von Goethe, pintura a óleo
por 
Gerhard von Kügelgen, 1808/1809.


O grande escritor alemão, em plena crise criativa após Fausto, embarcou no Grand Tour pela Itália em 1786, chegando a Siena em outubro. Aos 37 anos, Goethe era um humanista clássico, fascinado pelo Renascimento, e visitou a biblioteca anexa à Catedral de Siena como parte de sua busca por inspiração artística. 

Goethe ficou impressionado pela vivacidade das cenas da vida de Pio II, descrevendo a biblioteca como um "espaço onde a história se encena como em um teatro". Ele escreveu: "Os afrescos de Pinturicchio na Biblioteca Piccolomini são uma sequência admirável de eventos da vida do Papa Pio II; as figuras são graciosas, as paisagens encantadoras, e o todo forma um ciclo narrativo que cativa o espírito. É como se o passado renascentista sussurrasse segredos sob o teto estrelado"


VII. - Referências


Pesquisa e texto base - Wikipedia / Chat Gpt

Fotos: HistoriacomGosto / Wikipedia


https://whichmuseum.com/museum/piccolomini-library-siena-38919



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